sexta-feira, 26 de dezembro de 2008


Aqui, na rudeza da Serra
onde céu fica mais perto,
inspiro o ar da noite escura,
tremo, gelo, e desperto...




















Prospecção

Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,

Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna

De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.

Miguel Torga

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008











Quase um poema de amor


Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor

Miguel Torga

domingo, 14 de dezembro de 2008










Poema do Homem Só

Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém.

António Gedeão

sábado, 13 de dezembro de 2008

Quais são as tuas palavras essenciais?
As que restam depois de toda a tua agitação e projectos e realizações.
As que esperam que tudo em si se cale para elas se ouvirem.
As que talvez ignores por nunca as teres pensado.
As que podem sobreviver quando o grande silêncio se avizinha.

Virgílio Ferreira


quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Qualquer Tempo

Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.

Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 9 de dezembro de 2008


O Farol

Pelo mar bravio entrei
com vontade de o vencer,
sofri, ri e chorei,
e tudo o que queria era viver.

Fui levado ao sabor da maré,
perdi a vontade de lutar,
até que um dia te avistei
à deriva em alto mar.

Qual farol bem seguro,
que as ondas e os ventos ignora,
procuravas uma vaga mais pura
que te envolvesse e levasse para fora.

E o mar ganhou vida,
e a vida a mim me ganhou,
e com a força das ondas te envolvo,
e a ti, meu farol de vigia,
também o mar te alcançou.

O Amor e a Amizade...

Que pessoas teriam começado a amar-se, se se vissem como se vêem passados uns anos? E que pessoas se poderiam separar se voltassem a ver-se como se viram a primeira vez? O orgulho, que é quase sempre senhor dos nossos gostos, e que nunca está saciado, sentir-se-ia infinitamente lisonjeado por um novo prazer; a constância perderia o seu mérito: deixaria de fazer parte de uma ligação tão agradável, os favores actuais teriam o sabor dos primeiros favores e as recordações não fariam a menor diferença; a inconstância seria desconhecida e as pessoas amar-se-iam sempre com o mesmo prazer, porque teriam sempre os mesmos motivos para se amarem. As transformações da amizade têm mais ou menos as mesmas causas que as transformações do amor: as suas regras são muito semelhantes. Se um tem mais alegria e prazer, a outra deve ser mais serena e mais severa porque nada perdoa; mas o tempo, que muda o humor e os interesses, destrói-os quase do mesmo modo. Os homens são demasiado fracos e demasiado mutáveis para suportar muito tempo o peso da amizade. A Antiguidade deu-nos os exemplos; mas no tempo em que vivemos, pode afirmar-se que é ainda menos impossível encontrar um amor verdadeiro do que uma verdadeira amizade.

La Rochefoucauld, in 'Reflexões'

sábado, 6 de dezembro de 2008



Mesa dos sonhos

Ao lado do homem vou cre
scendo

Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo

E defendo-me da morte povoando
de novos sonhos a vida.

Alexandre O'Neill